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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

conto

Sinestesia

Este é mais um conto de Lygia Fagundes Telles. Aqui, a autora faz uma radiografia moral do egoísmo e da mesquinharia humana. De um lado, o pai enfermo, do outro, a filha que só pensa em si. Na incapacidade de assumir suas falhas, ela transfere a culpa a outros fatores. Percebe-se uma nítida preocupação em tentar se justificar de tudo não só para a empregada como também para si.

À proporção que a conversa entre as duas vai se desenvolvendo, dois sentimentos tomam conta de Tatisa: a angústia com o sentimento de culpa (relacionada ao pai) e o medo (voltado para a reação do namorado caso ela se atrasasse). Nota-se que a personagem prioriza o namorado ao pai

Fonte: Passeiweb

Antes do baile verde

(Lygia Fagundes Telles)


Há um desfile do Rancho Azul e Branco com seus passistas. O negro do bumbo vê duas mulheres debruçadas na janela e faz uma referência para elas. Lu, a empregada, diz que seu homem é mais bonito e que ficou de pegá-la “às dez na esquina”. Ela não quer se atrasar para que ele não fique brabo e daí “não sai mais nada”. Então, Tatisa pegou a empregada pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava escolhumbado. Tatisa tinha que vestir um saiote verde e ainda faltava pregar muita coisa na roupa.

Lu aproximou-se, temendo pelo atraso. Raimundo já deveria estar chegando.

“– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!”

Lu vê que não vai dar para pregar todas as lantejoulas verdes no saiote, mas mesmo assim prossegue no trabalho. Tatisa está de biquíni, meias, unhas e cabelos verdes: iam a um baile verde, com direito até a nota pela aparência. E ainda faltava mais da metade.

Enquanto Tatisa preocupa-se com o calor e o com o vestido, Lu franziu a testa e disse em tom baixo de voz “ele está morrendo”. Um carro passa buzinando, crianças gritavam e Tatisa continua preocupada consigo. Não deu importância ao que Lu falou.

De repente, Tatisa pergunta, num tom sombrio:

“– Você acha, Lu?

– Acha o quê?

– Que ele está morrendo?

– Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.

– Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.

– Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta.

– E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.

– Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu.

– Aquilo não é sono. É outra coisa” Tatisa então se levanta e toma um copo de uísque, preocupada se sua pintura não estava derretendo. “Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver.

– Você está bebendo demais”.

Já Lu fica preocupada novamente com o atraso, com o pensamento no Raimundo lá na esquina. “– Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara não pode esperar um pouco?”

Lu lembra que no carnaval passado se divertiu muito; já Tatisa diz que estava na cama, com muita gripe, e que neste queria se esbaldar.

“– E seu pai?” Volta a tomar um gole de uísque:

“– Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo?”

“– Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?”

“– Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender. Lu volta a falar no carnaval passado, mas Tatisa diz que ela já se enganou uma vez.

– Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem, papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse. – Ele se fez de forte, coitado.

– De forte, como? – Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar”. Tatisa se irrita; porém, arrepende-se:

“– Escuta, Luzinha, escuta

– [...] tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. [...] uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura...

– Ele estava se despedindo”. Tatisa culpa o médico por ter deixado o pai no quarto, sem ela saber tratar de doente. E se indigna com Lu:

“– Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!

– Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso”.

A jovem abre a porta do armário e se vê no espelho e pede para que Lu não demore, pois à meia-noite virão buscá-la. Então Lu pergunta por que não deixou o pai no hospital, e Tatisa diz que não podem ficar com um doente “que não resolve”. "Ele viveu sessenta e dois anos. Não podia viver mais um dia?”.

Tatisa faz uma proposta a Lu: para que ela fique cuidando de seu pai; ganhará, com isso, um vestido e calçados. Porém, a empregada rejeita. Oferece mais um casaco, mas é em vão. Tatisa bebe mais alguns goles de uísque. Diz que Lu estava enganada, e que o pai estava dormindo, e não morrendo. Então, pegam as bolsas e ficam juntas na escada. Tatisa quer espiar o pai, mas Lu desce as escadas. De repente, Tatisa pede para esperar e também desce rapidamente.

“Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la”.

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