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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Stela me abriu a porta

                                    Tirei daqui
      
   Havia alguns meses que nós nos conhecíamos e jamais o tempo passou rápido para mim.ela era ajudante de costureira no ateliê modestíssimo de Madame Graça, velha amiga de minha mãe. Meu irmão Alfredo, que morreu aos vinte anos, estupidamente, duma pneumonia dupla, era um rapazinho importante: não gostava de fazer  recados, de carregar embrulhos, de comprar coisas para casa na cidade.
    Mamãe respeitava-lhe a  vaidade. E eu fui buscar um vestido que ela mandara reformar – a seda estava perfeita, valia a pena. Quem me atendeu foi  Stela. Madame Graça havia saído e ela não sabia do vestido. Madame Graça não lhe prevenira nada. Mas não poderia esperar?- perguntou. Madame fora ali pertinho, não demoraria. Eu disse que esperaria. Ela me ofereceu uma cadeira, voltou para o seu trabalho e pusemo-nos a conversar.
    Stela era espigada, dum moreno fechado, muito fina de corpo. Tinha as pernas e os braços muito longos e uma voz ligeiramente rouca. Falava com desembaraço, mas escolhendo um pouco os termos, não raro pronunciando-os erradamente.
    - Está aqui há pouco tempo, não é?- perguntei.
    - Não faz um mês.
    É... Eu não a conhecia ainda
    Vem muito aqui, então?
    Muito, muito, não. Mas venho.
    Stela levantou-se para apanhar um carretel de linha e novamente voltou para a tarefa, ao lado de manequim encardido. A luz do sol, rala, branda, coando-se através da cortina de musselina branca, caía-lhe aos pés, e na doce penumbra suas mãos ágeis trabalhavam. Tinha os dedos grossos, marcados de espetadelas,as unhas cortadas bem rentes.
    A senhora sua mãe é amiga de Madame Graça? - indagou depois de trincar a linha preta nos dentes.
    Desde menina.
   Ah!
     Houve uma pausa em que a tesoura entrou em ação.
    Muito boa madame, não lhe parece? perguntou sem me olhar.
    - Muito
    Tenho gostado muito dela. Nunca manda, pede. E pede por favor. Não se zanga nunca, está sempre alegre, disposta animando a gente... Dá prazer trabalhar com uma pessoa assim, não é mesmo?
  Achei discretamente que sim, ela apurou mais um detalhe de sua obra, depois continuou:
    - A última patroa que eu tive era dura de se aturar. Não foi possível aguentá-la  mais. Tudo acabava ruim, mal feito. Não falava melhor com a gente, era como se estivesse lidando com escravos. O senhor já teve algum patrão assim?
    -Não.  Eu nunca tive patrão. Sou estudante.
   - ah, sim! ... de quê?
   - Verdadeiramente de nada. Estou acabando preparatórios. Acabo este ano. Depois é que não sei o que vou fazer.
   - Deve continuar a estudar, ora! Se formar. Não há nada como a gente se formar. Meu padrinho sempre dizia isso. Queria que eu fosse professora. Eu comecei a estudar, mas era um pouco malandra – riu – Mas ia indo. Depois é que tudo desandou. Meu padrinho morreu, madrinha ficou em dificuldade e eu me vi obrigada a abandonar os estudos. Fui trabalhar. Como sabia dar meus pontos, meti-me de costureira. É coisa um pouco ingrata. Trabalha-se demais, não há folga. Acaba-se um vestido, pega-se logo outro. Mas pode ser que um dia...
    -Acredito que sim
    Ela levantou a cabeça:
   -Tudo depende da sorte, pois não é mesmo?
   Quando eu ia responder, o alfinete caiu e me abaixei para procurá-lo.
    Ela fez um gesto:
    -Deixe!
    Mas apanhei –o e entreguei-o:
    Aqui está.
    Muito obrigada. Mas devia ter deixado no chão. São mil que caem por dia. De tarde quando se varre a sala, acham-se todos. É mais prático do que abaixar a todo momento, não acha?
    -Sim, é mais prático. Mas para mim agora foi um prazer...
    Ela sorriu:
    Há gosto para tudo.
    O relógio cantou lá dentro com voz rachada – quatro horas. E Madame Graça chegava com seu sorriso aberto, seus modos despachados, sua gordura demasiada. Queixava-se de mamãe.Uma ingrata! Assim também era demais. Há um ano que não a via ( há menos de quinze dias mamãe tinha ido visitá-la de noite).Jurava que não poria os pés em nossa casa enquanto mamãe não fosse vê-la.
   -É que mamãe anda muito ocupada, Madame Graça. Muito cansada. É tanta lida lá em casa...
   - Eu sei, histórias... – E me entregando o vestido: Diga a sua mãe que se não estiver como ela quer é só mandá-lo de volta.
    E eu me retirei, não sem olhar demoradamente, mas disfarçadamente, para Stela, que me sorriu. 
    Aquele sorriso, aqueles olhos me perseguiram dois dias, ao fim dos quais nos encontramos novamente. Ela saía às seis horas da casa de Madame Graça. Às cinco e quinze já estava na esquina esperando por ela. Uma tremura forte e irresistível sacudia as minhas pernas e o meu coração – se ela não viesse? Procurava reagir andando de um lado para outro, fumando  cigarro sobre cigarro, tentando recordá-la, já que suas feições pareciam ter-se desfeito na minha memória.
    Passou absorvida, apressada, não me veria na certa, se não me adiantasse. As pernas tremiam mais.
    - Boa tarde...
    Ela abriu um sorriso perfeito e estacou:
    - Que surpresa!
    Fechando os olhos, plantado à sua frente, disse quase inconscientemente que a esperava.
    - Por mim?
     Sim.
    Verdade?
    Verdade.
    Ela amassou a modesta carteira contra o peito, ligeiramente perturbada e indecisa se continuava parada ou prosseguia.
    - Fiz mal?
    Replicou prontamente:
    - Não
    Porque se fiz, não tenha o menor acanhamento de me dizer. Eu não me zango.
    Não! Falo a verdade.
    Sinto-me feliz por isto. Imensamente feliz.
    Ela pôs-se então a andar e eu perguntei:
  - Vai para casa, não vai?
   Ela olhava o chão:
    - Parece, pelo menos.
    Uma sensação agradável de segurança me enchia todo aí:
    - Podia ir mais devagar do que de costume?
    Ela continuou com os olhos baixos, mas retardou os passos.

    Passamos a fazer o mesmo caminho todas as tardes, e cada dia demorávamos mais a percorrê-lo. Ao fim  de uma semana íamos de mãos dadas, perdíamo-nos por mil ruas antes de chegarmos à ladeira onde ela morava, no Rio Comprido. Nascera ali, numa casinha de três cômodos, atrás de um armazém que prosperara  Ali perdera o pai, que era embarcadiço, conhecera o mundo a pamo, outras gentes. Os japoneses comiam arroz com pauzinhos; os chineses adoravam filhotes de ratos fritos na manteiga; num lugar não sabia onde, os indígenas matavam os pais quando estes ficavam velhos; na África, as mulheres é que trabalhavam, os homens ficavam dormindo em casa, bebendo, fumando e se abanando por causa do calor! Deixava-a falar e ela falava muito.
    Sabia eu por que ela se chamava Stela? ah! Ria – por causa duma canoa. Foi a primeira canoa que meu pai teve construída por ele mesmo. Sempre amara o mar, a aventura o desconhecido. Seu desejo era ver o mundo, conhecer todo o mundo. E um dia foi-se ao mar! Acaba num cargueiro – o Sereia. Tinha o casco preto, baixo, um ar de navio fantasma, muito vagaroso. No mar das Antilhas, uma tromba d’água deu conta dele. Não se salvou ninguém. Eram quarenta homens. Ela tinha oito anos. A mãe ficou como louca, não queria acreditar. Ninguém jamais pensara que o pai se casasse com ela. Conheciam- se desde pequenos, tinham sido vizinhos muitos anos na praia de Paquetá, onde o pai dela era administrador duma caieira. Um dia ele chegou de uma viagem, foi procurá-la, dizendo que queria certidão dela para tratar dos papéis. E quinze dias após estavam casados. Um mês depois, ele partiu. Seis meses mais tarde voltou. Mais quinze dias e lá se foi. Quando veio de novo ela (Stela) tinha uma semana de nascida, era muito gorda – uma bola! A mãe escolhera o nome: Lourdes. Ele não disse nada e foi registrá-la. De volta é que se viu – registrara-a com o nome de Stela.
    Tinha ela seis para sete anos, quando ele veio muito doente de uma viagem. Era um reumatismo muito forte, que quase não o deixava dormir. Ao fim de alguns dias estava livre das dores, já podia dormir, mas o médico recomendou que tomasse cuidado com o que fizesse, se possível, um tratamento mais demorado.     Ele tinha seus cobres juntos, e seis meses pode ficar em casa, tratando-se. Foi um tempo feliz! Recordava-se comovida, umas lágrimas furtivas nos olhos. Ele era muito bom! Amava-a muito. Passeavam juntos, iam à praia, ao cinema, comprava-lhe uma porção de brinquedos, enchia-a de sorvetes, balas, gulodices, vestidos novos. O padrinho, que era engenheiro, ralhava com ele: você acaba estragando esta pequena de todo jeito. Ele ria: estragava o que era dele. É, retrucava o padrinho, estraga o que é seu, mas quando for embora quem aguenta são os que ficam.
    Quando ele morreu, a mãe ficou alucinada, queria morrer também. O padrinho protegeu-as. A mãe trabalhava como uma moura, lavando para umas famílias melhores das redondezas. Era ela,Stela, no princípio, quem entregava a roupa. Mas estava na escola. Fora um pouco avoada na escola. Muito distraída, diziam os professores. O Padrinho queria que ela fosse depois para a Escola Normal, saísse professora, tivesse o futuro garantido. Era bom. Mas, infelizmente, o padrinho morreu de repente, do coração, quando ela ia acabar o curso primário, aos quatorze anos. A madrinha ficou mal de vida. Era de São Paulo. Voltou para lá, pois tinha ainda os pais vivos. Adeus, estudos! Foi obrigada a trabalhar. Mas não vai lavar. A mãe não consentiu. Fosse costurar. Dona Amélia costurava para a vizinhança. Tinha boa freguesia. Aceitou-a como aprendiz. Três meses depois estava afiada. Costurar é fácil. Um pouco de jeito, um pouco de paciência, um pouquinho de gosto, o resto vai sozinho. Mas Dona Amélia não queria ainda pagá-la. Era uma exploração! Procurou outro lugar. Foi para um ateliê no Estácio. Depois – a patroa era muito implicante – saiu e foi trabalhar na Mariposa Azul, na Rua Sete. Aguentou-se um ano aí, mas trabalhava demais, comia mal, gastava muito dinheiro em bonde... Assim, tratou de arranjar um emprego mais perto, no bairro mesmo. Esteve pouco tempo nele. Também não havia pequena que parasse lá. Os donos eram uns gringos, gente danada! Só vendo. Andara ainda em duas outras casas, agora estava com Madame Graça. Madame era muito boa. Lá se iam três meses. 
    Uma noite, voltávamos do cinema, ela me disse:
    - Não sei por quê tenho vontade de fugir. Parece que é o sangue de papai.
Eu olhava seu corpo, não respondi. Mas sentia que ela fugiria mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei por quê, nada fazia para prendê-la. Aceitava a ideia de fuga como um acontecimento que não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os seus olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas do mar, o chamado das ondas de um mar desconhecido, verde, fundamente verde, misterioso.
     Sentia-me fraco. Por que não faria nada para prende-la, para tê-la sempre ao meu lado, já que sentia que a amava? Não sei.
     Está tão distante tudo isso, hoje, e o mesmo mistério perdura.
    Por onde andará Stela? Em que mares de homens se perdeu?"
    Às nove horas eu esperava por Stela na esquina combinada. Era uma véspera de Natal, bastante quente, de um céu muito claro. Ela chegou e me disse, calma, resoluta, com grande indiferença pelo destino:
   -   Aqui estou.
   - Querida!
    Fomos andando, resolvidos. Tudo estava preparado por mim, com meticulosidade que me assombrava a mim mesmo. Tinha tratado o quarto. Tinha discutido com o homem do hotelzinho, combinado a chegada.
    É uma moça direita – dissera ao homem. –Séria.
    Destas vêm cá dúzias.
    Era português, com um sotaque muito carregado, um olhar sórdido que me arrepiou. Rebati com raiva:
    - Mais respeito! O senhor está muito enganado! O homem abaixou-se como um tapete. "Desculpasse-o ... Não tinha a menor intenção de faltar ao respeito. Mas é que...” Não quis saber de mais nada. Saí. Estava tudo combinado, às nove, nove e meia, estaria lá com ela.
    Fomos indo. Tomamos um bonde, descemos. Andamos alguns minutos sem dizer uma palavra. Jamais pude saber se era por entendimento tácito, por medo do destino, ou por nojo antecipado do depois. Sei que ela me disse, de repente, com a voz mais rouca, os olhos mais verdes, apertando-me a mão com mais calor:
    - Não devia ter vindo.
    Eu tremi e paramos numa pequena ponte, como se, muda e previamente, tivéssemos combinado parar, não ir para a frente, ficarmos ali para sempre pregados. A lua é paz, é pálida, e nós tão pálidos.  As horas correm, o barulho do rio correndo tinha uma tristeza de morte.
    Duas velhinhas desceram a rua, vagarosas, de preto, escondidas nos xales. Passaram outras pessoas, formas vagas, que não pareciam deste mundo. E os sinos tocavam, tocavam...
    -Vamos? perguntou ela, rompendo um silêncio que parecia ser eterno.
    Não fomos. Ficamos, pregados na pequena ponte, ouvindo o barulho do rio e o barulho dos sinos, vendo as estrelas na altura, esquecidos, perdidos, como restos de naufrágio.

(Marques Rebelo)


Marques Rebelo, pseudônimo literário de Edi Dias da Cruz, nasceu no Rio de Janeiro em 1907. Escritor, jornalista, contista, novelista e romancista, publicou inúmeros livros. Crítico da Academia Brasileira de Letras, acabou ocupando sua cadeira nº 09, para a qual foi eleito em 10 de dezembro de 1964. O autor projetara escrever uma grande obra intitulada O Espelho Partido, dividida em 7 volumes. Concebida para homenagear o Rio de Janeiro, que seria o personagem principal, a obra, no entanto, como assinalou Edilberto Coutinho, foi também evoluindo para "a autobiografia, a memória, o cronograma histórico, o cine-jornal e o documentário, e ganhou a forma de um diário". Mas o escritor só conseguiu escrever os três primeiros volumes, intitulados O Trapicheiro (1959), A Mudança (1962) e A Guerra Está em Nós (1968). Os três cobrem o período de 1936 a 1944.OBRAS:Oscarina, contos (1931)

Três caminhos, contos (1933)

Marafa, (1935)

A estrela sobe, (1939)

Disponível em:http://www.releituras.com/mrebelo_menu.asp



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